Tortura – uma realidade atual

por Guilherme Machado

Ativista da Rede de Ação Jovem

Vários exemplos de tortura podem ser encontrados nos anais manchados de sangue da História. Antes do estabelecimento de uma sociedade democrática ou da aparição do conceito de Direitos Humanos, os castigos corporais e a simples barbárie em vários sistemas políticos, entre os quais a Inquisição Europeia, eram a norma naquilo a que podemos chamar de um protótipo de justiça cega pela ignorância e desrespeito à manutenção do bem-estar do indivíduo. Os seres humanos têm tendência ao completo desrespeito pela  individualidade e salvaguarda deste bem-estar, e em situações anárquicas e de caos ou em momentos de enorme fanatismo por ideais, a tortura pode rapidamente tornar-se uma realidade.

São as situações caóticas que devemos abordar ao falar da tortura no séc. XXI. Vivemos num século em que as instituições democráticas chegaram a um consenso sobre a tortura. É um ato desumano e é condenado pela Declaração Universal de Direitos Humanos, ratificada por todos os estados soberanos do planeta. A Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura, criada em 1987 e ratificada por 156 países levou a uma tendência de proibição da tortura em virtualmente todos os cantos do globo. Entretanto, um relatório da Amnistia Internacional em 2014 aponta para que tenha havido tortura recentemente em pelo menos 141 países. Neste texto serão abordados vários casos em que a tortura é praticada, muitas vezes, aos olhos da lei e do estado.

O que leva ao uso da tortura em primeiro lugar? Será uma espécie de sadismo? Uma vingança por parte de quem jura defender a sua pátria, partido ou organização? Sim e sim. Segundo o relatório anteriormente referido, países como o México, onde uma verdadeira Guerra contra o tráfico de narcóticos herdada dos anos 80 decorre, faz uso da tortura regularmente em esquadras da polícia, com o objetivo de obter informação. Vale a pena lembrar que o mesmo ocorre do lado dos cartéis, que utilizam a tortura para castigar rivais ou quem trai a organização. Um exemplo desta tortura patrocinada pelos cartéis e governo mexicano é o caso do agente norte-americano Kiki Camarena da DEA (Drug Enforcement Agency), que após ser capturado pelo Cartel de Guadalajara em 1985, foi vítima de espancamentos frequentes, de uma perfuração no crânio e de uma fracturação das suas costelas. Tudo isto antes de ser assassinado com uma bala em cada membro do corpo. Outros países como o Uzbequistão (uma ex-república soviética que carrega o fardo de uma extrema falta de liberdade civil e política – uma característica comum dos antigos estados soviéticos da Ásia Menor), obtém confissões de criminosos através de tortura em esquadras de polícia. Na verdade, o uso da tortura por parte das forças da lei de estados autocráticos ou repúblicas não seculares é comum. Alguns exemplos são a Arábia Saudita, o reino de Brunei, a teocracia do Irão, onde a tortura é um hábito comum desde 1979. A tortura nestes países recebe uma verdadeira fundamentação por parte do governo, e é mais intrínseca ao funcionamento da lei devido à influência do fundamentalismo islâmico e a sua influência no estado (os três países acima descritos são teocracias). O extremismo religioso é outra vertente que leva ao uso da tortura em várias regiões do mundo, e um exemplo perfeito de tais atrocidades a surgirem por parte da religião atualmente é a República Democrática do Congo, que após ter sido devastado por duas guerras internacionais e uma guerra civil, possui vários grupos armados dentro do seu território, entre os quais o Lord’s Resistance Army (LRA), um grupo fundamentalista cristão liderado por Joseph Kony, conhecido por várias atrocidades nos seus anos de existência, entre as quais tortura. É importante notar que os dois conflitos referidos acima foram as duas Guerras do Congo, travadas entre 1996 e 2003, envolveram as Forças Armadas de nove países fronteiriços com a RDC (Uganda, Angola, Ruanda, Chade, Zimbabwe, Namíbia, Burundi e Sudão) e vários grupos rebeldes armados, todos envolvidos em crimes de guerra que passam pela tortura de soldados inimigos capturados. Todos os países referidos até agora são signatários de todos os pactos internacionais relevantes à tortura e direitos humanos e claramente agem em completo desrespeito ao compromisso feito com a comunidade internacional e com a humanidade. A população deve exigir por parte dos governos uma maior proatividade no combate à tortura e um esforço internacional deve ser feito para terminar com o apoio e uso clandestino ou transparente da tortura por parte dos estados. Outro exemplo é a prisão americana de Guantánamo, onde a tortura é recorrente, mostrando que esta prática não é exclusiva de países menos desenvolvidos mas sim de todos os tipos de países.

As descrições feitas acima da tortura em vários locais do mundo demonstram dois aspectos essenciais da tortura atualmente. O primeiro é que o ato da tortura não é apenas um crime subterrâneo de organizações criminosas ou de grupos rebeldes, mas também um ato subsidiado regularmente por governos e as suas forças policiais ou armadas. O segundo aspecto essencial relaciona-se com a psique humana e a sua condição. Uma pessoa comum que leia relatos sobre tortura é capaz de ficar facilmente perturbada com aquilo que um ser humano, que partilha com 7 mil milhões de pessoas a mesma sensibilidade física e psicológica, o mesmo sentido de aspiração, criatividade e capacidade de estabelecer relações sociais, é capaz de fazer a um outro membro da sua espécie. Baleamentos, choques elétricos, espancamentos, cortes, o uso de ferramentas para mutilar ou arrancar membros, queimaduras, o uso de estruturas como pau de arara e não menos importante, a tortura psicológica, são vários exemplos daquilo a que a condição humana se pode reduzir em vários momentos da sua existência. E é exatamente por esse motivo que é o dever dos milhões de pessoas afortunadas que não experienciam essa possibilidade todos os dias, de se sensibilizarem e compreenderem que a tortura é um fenómeno atual e comum. E que, acima de tudo, neste exato momento, uma pessoa, um ser humano, protegido não só pela lei do seu país mas também pela lei internacional, encontra-se numa cave ou numa cela, despido, espancado e destruído psicologicamente. Com o sentimento de que a partir do primeiro segundo da tortura, o mundo ao seu redor desapareceu, e que a partir daquele instante, o mundo é sofrimento, e o abandono é a sua condição necessária. É por estas pessoas que são retiradas do altar da dignidade e bem-estar humano que devemos lutar e ganhar consciência sobre o fenómeno da tortura. O Dia Internacional Contra a Tortura não deve ser mais uma data para impressionar engravatados, e sim um momento de reflexão, e acima de tudo ação. Exigir a responsabilidade dos governos nacionais com o fim da tortura dentro dos seus territórios, assim como exigir muito mais da comunidade internacional no combate a esta prática desumana. Pois estatísticas com a que foi exposta no início deste texto demonstram que apesar do grande progresso feito nos últimos cinquenta anos, ainda nos encontramos no primeiro degrau da escadaria do bem-estar e felicidade humana.

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Fontes:

https://www.amnestyusa.org/files/act400042014en.pdf    – Relatório da Amnistia Internacional sobre a tortura em 2014.

https://www.amnesty.org/en/countries/europe-and-central-asia/uzbekistan/report-uzbekistan/ – Relatório da Amnistia Internacional sobre o Uzebequistão (2017/2018)

https://www.amnesty.org/en/countries/americas/mexico/report-mexico/ – Relatório da Amnistia Internacional sobre o México (2018)

https://www.amnesty.org/en/countries/africa/democratic-republic-of-the-congo/report-democratic-republic-of-the-congo/ – Relatório da Amnistia Internacional sobre a República Democática do Congo (2017/2018)

https://www.amnesty.org/en/countries/middle-east-and-north-africa/saudi-arabia/report-saudi-arabia/ – Relatório da Amnistia Internacional sobre a Arábia Saudita (2018)

https://www.amnesty.org/en/documents/mde13/9900/2019/en/ – Relatório da Amnistia Internacional sobre o Irão

https://www.amnesty.org.uk/press-releases/democratic-republic-congo-torture-weapon-war-against-unarmed-civilians – Relatório da Amnistia Internacional relatando os abusos de direitos humanos cometidos durante as Guerras do Congo (1996-2003), especialmente pelos grupos armados congoleses e pelo Ruanda e Uganda.