Sónia Duarte: “Na altura, para trabalhar a temática tinha mesmo de ser através de advocacy porque ainda não havia sensibilização quer de políticos, quer de decisores… não havia acesso às comunidades”

A ReAJ Lisboa esteve em conversa com a Sónia Duarte, Coordenadora da Delegação de Lisboa da Associação para o Planemento da Família desde 2004, uma das entidades de referência que têm realizado intervenções, em Portugal, para erradicar a mutilação genital feminina. 

 

 

A Associação para o Planemento da Família (APF) iniciou o trabalho sobre a mutilação genital feminina por meio de advocacy como relatado pela Sónia Duarte:

“Na altura, para trabalhar a temática tinha mesmo de ser através de advocacy porque ainda não havia sensibilização, quer de políticos, quer de decisores, as comunidades ainda estavam muito afastadas. Ou seja, não havia acesso às comunidades”.

Em complementaridade, a Sónia Duarte referiu que,  no âmbito de intervenção pela erradicação da MGF, a APF começou pela “sensibilização de comunicação social, sensibilização do público em geral (…) com decisores parlamentares, decisores políticos para a construção das primeiras políticas”.

 

Com destaque para o trabalho da APF sobre a mutilação genital feminina, a Sónia Duarte expôs, com a Organização das Nações Unidas, a elaboração do primeiro documento para profissionais de saúde na área da mutilação genital feminina, publicado em 2001, e a construção do primeiro Plano de Ação em Portugal para o combate à mutilação genital feminina, juntamente com vários órgãos do Estado e organizações não governamentais.

 

Durante a conversa, falou ainda sobre o trabalho da End FGM Network, uma iniciativa da campanha da Amnistia Internacional “End FGM” em 2008 e que se tornou numa rede independente em 2015, em que a APF é convidada como sócia fundadora e a Sónia Duarte, além de fazer parte da Direção, representa Portugal nesta rede europeia que visa assegurar uma ação europeia sustentável para erradicação da mutilação genital feminina.

 

Desta forma, compreendemos que o trabalho da APF sobre a mutilação genital feminina tem sido ampla e diversa.

 

Atualmente, o trabalho da APF acerca da mutilação genital centra-se em três aspetos:

  • “formação com profissionais na área da saúde, e isto inclui também o tema da MGF,”;
  • “muito o trabalho com jovens”;
  • “confronto entre as duas linguagens que existem acerca da mutilação genital feminina. Uma linguagem do mundo ocidental que é uma linguagem muito na linha do alarmar, do chocar, do criar evidência da importância da mudança da prática e da maneira de ver a mutilação, e, por vezes acaba por ser muito sensacionalista à volta da mutilação genital feminina. O que é contra procedente quando trabalhamos com as comunidades e temos que ter um bocadinho da leitura daquilo que são as suas realidades”.

 

Em alusão aos compromissos estatais assumidos através dos instrumentos internacionais (DUDH, CDC e Resoluções) e a sua importância em termos práticos, Sónia Duarte assume “claramente e  efetivamente a importância destes documentos porque são eles que nos acudam quando nós temos de referir os assuntos”, mas também destaca a importância de descodificação para que seja acessível para as pessoas e as comunidades afetadas. Neste pendor, destaca a  missão que as organizações não governamentais “têm em garantir que há uma ligação entre as políticas, o efetivo cumprimento e o acesso das pessoas às diretrizes e direitos que estão consagrados”.

 

Acerca dos maiores desafios para a erradicação da mutilação genital feminina em Portugal, Sónia Duarte afirma “que o mais difícil é trabalhar o mundo ocidental para ter de facto uma abertura, uma capacidade de pensar as coisas sem um julgamento à piori e rejeição que depois contraria processos de mudança”.

 

E sobre as estratégias para o futuro, a Sónia Duarte destacou estratégias do ponto de vista dos serviços e das políticas para alcançar as comunidades afetadas de forma a evitar os reveses das mudanças impostas por medidas coercivas.

 

No registo do balanço das iniciativas realizadas pela APF para a erradicação da mutilação genital feminina, Sónia Duarte disse que “já se fez muita coisa”. E a prova “é o quanto o tema está muito mais presente do que alguma vez teve”, por exemplo através de notícias e exposições.

Mas, assinala que as mudanças vão sendo graduais, principalmente acerca da linguagem, e inclusive, por parte de pessoas que têm interesse na temática e efetivamente trabalham para a erradicação da mutilação genital feminina.

 

Em menção aos objetivos alcançados pelo trabalho da APF sobre a mutilação genital feminina, Sónia Duarte referiu “a formação de um grupo de mediadoras culturais,  mulheres das comunidades afetadas, sobreviventes, que tiveram formação para poder assistir os centros de saúde em situações mais difíceis de negociação. A forma como estas mulheres assumem publicamente a sua situação e querem ter formação e dispõem do seu tempo, a título de voluntariado, para dar uma outra linguagem ao tema.”.

 

Sónia Duarte disse, inicialmente, que a mudança não é gradual, e completou que não tem de ser. E, no mesmo entender, articulou “sinto que as pessoas estão também desejosas de discutir o tema (…) E tomam de bom agrado alguém abrir-se, explicar, ouvir”.

 

Por fim, na sua perspetiva pessoal e da APF, Sónia Duarte consignou a comparação das várias maneiras de controlo da sexualidade da mulher, em várias comunidades do mundo inteiro, como uma abordagem de sensibilização que tem demonstrado que “estamos todos no mesmo processo de transformação (…) Estamos todos do mesmo lado  a ter que resolver o problema do controlo da sexualidade feminina, a afirmação da sexualidade da mulher e do prazer da mulher.” e suscitado reflexões interessantes.