Janica Ndela: “Tentar prepará-las (as profissionais) para estarem aptas para questões caso apareça alguma sobrevivente com esse problema ou que está sendo ameaçada para ser submetida a alguma prática, a quem recorrer, como fazer? Tentamos fazer esse trabalho de base”

A ReAJ Lisboa esteve em conversa com Janica Ndela, Técnica Superior e membro da Direção da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), uma das entidades de referência em Portugal no combate à mutilação genital feminina.

 

 

O interesse da UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) na área da Mutilação Genital Feminina iniciou-se a partir de 2002, ano em que se deu uma conferência neste âmbito, onde participaram diversas ONG’s. Em 2013, a UMAR desenvolveu um projeto, o ISI, “Informar e sensibilizar para a intervenção contra a violência de género”. Este projeto tratava questões desde o tráfico de seres humanos à MGF.

 

Apenas em 2015 a UMAR criou um projeto unicamente direcionado para a MGF. De acordo com Janica Ndela, “esse projeto se baseava na intervenção e sensibilização de pessoas nas escolas, nos centros de saúde e nos centros de apoio a imigrantes”.

Neste sentido, durante a conversa, a técnica da UMAR referiu também projetos que deram continuidade a este primeiro, tais como o “Jovem Ativista pelo Fim da MGF”.

 

Além dos projetos desenvolvidos, a UMAR tem também duas casas de acolhimento para mulheres  vítimas de violência e dois centros de atendimento, detendo também vários núcleos a nível nacional, na Madeira, Porto, Braga, Coimbra, Viseu, trabalhando também noutras áreas, tais como a habitação, questões climáticas, violência no namoro, entre outros.

 

Na questão relativa aos compromissos e instrumentos legais existentes e à forma como se refletem em termos práticos, Janica referiu que “não devemos achar grande coisa”, uma vez que a produção dos materiais e artigos não devem ser vistos como a solução do problema, ainda que sejam indispensáveis. No entanto, deve-se ir “além disso, no sentido de chegar às pessoas” da comunidade.

 

Janica frisou também a importância de capacitar os profissionais, de modo a estarem mais atentos e poderem identificar a MGF e se envolverem, cada um na sua área. Assim, além de materiais, artigos e leis, é também necessário que exista envolvimento – dos profissionais, das comunidades e, sobretudo, das sobreviventes – na busca por uma solução. “Não importa existir leis de proteção (…), importa chegarmos a essas pessoas”.

 

Relativamente ao modelo de sinalização das sobreviventes da MGF, foi referido que deve existir alguma reflexão em torno do mesmo, na medida em que deveria existir uma outra forma de identificação que não envolvesse uma estigmatização das pessoas, dos seus países de origem, uma vez que isso pode ter como consequência que as pessoas se sintam ameaçadas e/ou controladas apenas porque são desses países.

 

“Eu creio que no dia em que passarmos a considerar essa questão como sendo um problema social, capaz de afetar tanto pessoas provenientes desses países como provenientes de outros países, passaremos assim a ser mais justas na luta contra a MGF.”, afirma Janica, acrescentando “Há coisas que também podemos abordar como sendo o desafio, que é falta de envolvimento das pessoas, da comunidade, das sobreviventes, como sendo ativistas na luta contra a MGF, como sendo técnicas de projetos na luta contra a MGF”.

 

Conclui-se então, neste sentido, que para o combate à MGF , é estritamente necessário que o trabalho não seja apenas feito para a comunidade, mas também com a comunidade; porque esta é uma questão que envolve questões de género, questões de discriminação racial, e não existe forma de lutar pela erradicação da prática se as pessoas da comunidade não forem também elas “agentes de mudança”:

 

“Não é continuar a identificar essa pessoa como uma coitada, com a vítima. Isso não é ajudar a pessoa (…). Nós não queremos trabalhar para salvar as sobreviventes, nós queremos envolver as sobreviventes para que elas também sejam agentes transformadores, que sejam ativistas. Não é trabalhar para elas, mas sim trabalhar com elas. Isso é muito importante.”

 

Assim, o balanço geral feito relativamente ao alcance de pessoas e resultados dos projetos da UMARrelacionados com esta problemática, é de que as pessoas estão a sentir-se mais capacitadas para falarem da MGF. Janica refere que cada vez mais a mutilação genital feminina deixa de ser considerada apenas uma questão de comunidades imigrantes, e que alguns profissionais – professores, educadores – “estão a sentir a responsabilidade de debater essa temática na sala de aula como sendo uma questão de direitos humanos, como sendo um problema de violência contra as mulheres e não um problema das pessoas da Guiné, do Senegal, ou de Moçambique ou outros países.”

 

Finalmente, Janica terminou referindo que não devemos discriminar ninguém por fazer parte de uma comunidade onde se viva esta realidade ou ter sobrevivido à prática, assumindo-se preconceituosamente que as pessoas que praticaram a mutilação genital feminina nas suas filhas são desumanas e criminosas. “São criminosas de um ponto de vista em que põem em causa o bem-estar dessa mulher? Isso é óbvio (…). Mas antes de criminalizados a prática, precisamos de entender o profundo: como funciona a prática? Não é só o corte em si que está em causa. A parte do corte é que traz consequências na saúde da mulher”.

 

Deste modo, Janica diz-nos que a prática se mantém independentemente da sua ilegalidade, e que aquilo que neste momento é necessário é combater a prática através da disseminação de conhecimento da mesma e capacitação de profissionais de várias áreas. “Não adianta a pessoa julgar uma coisa que não conhece, a situação no seu fundo, a razão que leva essas pessoas a praticar a MGF”.