O silêncio da guerra contra as mulheres

Por Inês Pereira,
ativista da Rede de Ação Jovem

A violência sexual é uma das armas de guerra mais utilizadas em conflitos, genocídios e guerras, e já deixou milhões de vítimas.

Apesar do progresso significativo que tem sido feito nos esforços para erradicar a violência sexual em tempo de guerra e fornecer justiça para os sobreviventes desses crimes horríveis, a luta está longe de terminar. A violência sexual continua a ser usada como uma arma estratégica, eficaz e gratuita para aterrorizar as comunidades e proporcionar ganhos territoriais, políticos e económicos, a ser perpetrada em conflitos em todo o mundo incluindo Nigéria, Iémen, Síria, Kosovo, Iraque, República Democrática do Congo, Mianmar Sudão do Sul.
Para aumentar a consciência sobre a necessidade da violência sexual associada a conflitos, homenagear as vítimas e sobreviventes da violência sexual em todo o mundo e todos os homens e todas as mulheres que corajosamente lutaram para acabar com a impunidade de tal violência, as Nações Unidas adotou a 19 de junho de 2015, o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Sexual em Conflito. A data foi escolhida para comemorar a adoção em 2008, da Resolução 1820 (2008) do Conselho de Segurança, na qual o Conselho condenou a violência sexual como uma tática de guerra e um impedimento à construção da paz.

Mudança de paradigma: de algo normal para algo a ser combatido

Apesar da recorrência da violência sexual durante as guerras e conflitos armados ter sido persistentemente denunciada por autoras e movimentos feministas durante o século XX (Roque, 2018), só no final dos anos 1990 esta veio a ser considerada como um problema a ser resolvido através da criação de normas e da implementação de políticas internacionais, materializada pela Agenda Mulheres, Paz e Segurança e por várias resoluções do Conselhos de Segurança das Nações Unidas. A violência sexual deixou de ser vista como algo normal ou inevitável, dada a natureza da guerra e de uma masculinidade assente em pulsões pretensamente incontroláveis, e passou a ser vista como algo que pode e deve ser prevenido e combatido (Hirschauer, 2014). Ao longo dos últimos anos, têm assim sido implementados esforços na luta contra a violência sexual relacionada a conflitos, incluindo processos bem-sucedidos de tribunais nacionais e internacionais contra criminosos que pareciam intocáveis; reformas legais e legislativas para aumentar a proteção e garantir o acesso à justiça para sobreviventes e testemunhas; conjuntos abrangentes de serviços especializados para sobreviventes, incluindo iniciativas de reabilitação socioeconómica e reparações; códigos de conduta das forças de segurança para garantir a sensibilização e a formação sobre violência sexual relacionada com conflitos; e uma mentalidade global que renuncia firmemente esses crimes e apoia os esforços das mulheres e das suas organizações para eliminá-los.

As sobreviventes e vítimas da violência sexual em conflito: Mulheres e meninas

A violência sexual em conflitos afeta em grande parte mulheres e meninas, uma característica que António Guterres, o Secretário Geral das Nações Unidas, justifica devido à estreita ligação a questões mais amplas de desigualdade de gênero e discriminação (Conselho Geral, 2018).
Dois casos mais recentes de países em conflito onde as suas populações, especialmente as mulheres, foram e têm sido vítimas de violência sexual e de outras violações:

Sudão do Sul

No Sudão do Sul, as violações são usadas na guerra como um instrumento de poder subjugar as suas vítimas. O país vive uma guerra civil na qual as mulheres são vítimas recorrentes de humilhações psicológicas somadas a abusos sexuais. O massacre continua, está cada vez mais presente e o silêncio é cada vez maior. Denúncias de casos de violência sexual foram reportados recentemente, acentuadas após a transição em abril, com a queda do exército após meses de protestos na rua devido à situação económica precária, à inflação e à escassez de mercadorias. Dados apontam para que as forças do Conselho Militar do Sudão mataram mais de 100 pessoas, violaram também outras 70 e feriram ainda mais de 500 pessoas. As Nações Unidas já denunciaram o caso com a exigência da “cessação imediata e completa de toda a violência contra civis, incluindo a violência sexual”, afirmou, em comunicado, a enviada especial da ONU para a Violência Sexual em Conflitos, Praila Patten.

Testemunho de Rachel, refugiado do Sudão do Sul

Bangladesh

No Bangladesh, para onde fogem as mulheres de étnica rohingya, alvo de abusos dos direitos humanos em Mianmar. As vítimas apátridas são alvo de violações acompanhadas de ações especialmente cruéis, com agressões físicas, assassinatos dos seus parentes e destruição do seu patrimônio.

Uma mulher Rohingya cruza a fronteira de Mianmar até Bangladesh, perto da aldeia de Anzuman Para em Palong Khali. ACNUR / Roger Arnold

Entre os refugiados Rohingya que se abrigam nos acampamentos lotados da região de Cox’s Bazar, no sudeste de Bangladesh, muitas são as histórias silenciosas de mulheres vítimas de violência sexual. Desde Agosto, mais de 16 mil bebês nasceram nos campos de refugiados, segunda a agência da ONU, informou a Representante Especial do Secretário Geral da ONU sobre Violência Sexual em Conflito, Praila Patten.

Efeitos geracionais cruzados

Os efeitos da violência sexual relacionada com conflitos ecoam através das gerações, através de traumas, estigma, pobreza, problemas de saúde e gravidez indesejada. As crianças, cuja existência emana dessa violência, são muitas vezes rotuladas de “filhos do inimigo” ou “sangue mau” e costumam ficar alienadas do grupo social da sua mãe. Para além, estas crianças muitas vezes lutam com questões de identidade por décadas após o fim da guerra. Raramente são aceites pela sociedade, e o aborto inseguro continua a ser uma das principais causas de mortalidade materna em contextos afetados por conflitos.

A falta de informação e o estigma que permanece sobre as vítimas de abusos nestes contextos

A violência sexual é uma violência da integridade de qualquer vítima, homem ou mulher, e causa severos traumas físicos e psicológicos.
Quando um ato de violência sexual termina, os sentimentos de vergonha e culpa prolongam o sofrimento das suas vítimas. Principalmente se forem mulheres que tentam sobreviver em zonas de conflito, onde a violência sexual é usada como uma arma de guerra. O medo de falar sobre o trauma faz com que elas raramente procurem ajuda, retardando o atendimento médico e, consequentemente, reduzindo as oportunidades de evitar a transmissão de doenças e a gravidez não planejada.

“A violação sexual é uma ferida que queima a alma dia a dia; isso fará com que a envergonha seja constante diante da família e da comunidade. É um sentimento constante toda a vida. Se uma mulher não tivesse mão, teria orgulho de dizer que a perdera na guerra; se ela fosse cega ou perdesse as pernas, todos a ajudariam. Mas quando são vítimas de violência sexual isso não acontece, elas guardaram-nos em segredo nos seus corações.” (Feridas que queimam as nossas almas”, Compensação pelos sobreviventes de violência sexual durante o tempo de guerra de Kosovo, mas ainda sem justiça. Amnistia Internacional 2017)

É necessário tempo para que as mulheres partilhem o que aconteceu. No Sudão, existem casos que relatam experiências de mulheres que foram deixadas amarradas sem roupa num lugar público, por onde passavam homens armados o tempo todo. Frequentemente objetos foram também introduzidos nos seus corpos e a procura de ajuda aconteceu quando já havia algo de errado no corpo, como por exemplo, quando surgia uma verruga na área genital ou a menstruação da mulher atrasava.

“Ele agarrou meu cabelo e me empurrou para dentro da casa, e rasgou minhas roupas, então ele me empurrou para fazer sexo oral. Naquele momento eu vomitei e ele socou meus ouvidos, e eu não pude ouvir, e então muitos deles vieram, e eles me estupraram por trás. Eu senti que eles estavam me despedaçando”. Vera, vítima de estupro no Kosovo

Os riscos dos abusos sexuais são muitos: doenças sexualmente transmissíveis; a exposição à gravidez, que é o mais recorrente; a mutilação genital feminina; e fraturas decorrentes de agressões físicas.

“Só uma das minhas irmãs sabe – senti que deveria contar a ela, mas quando meu marido voltou da guerra, tentei discutir como ele viu a questão. Ele disse que [estupro] só aconteceu com mulheres imorais. Então eu vi que não havia esperança de contar a ele e mantive esse segredo até 2016 ”. Merita

Trazer justiça às vítimas, combater a impunidade e mudar o rumo da história

A violação e outras formas de violência sexual, quando cometidos no contexto de um conflito armado, seja internacional ou não internacional, constituem uma violação ao Direito Internacional Humanitário. Todas as partes de envolvidas num conflito armado devem respeitar a proibição de violência sexual e todos os Estados possuem a obrigação de processar os perpetradores. Estas práticas estão também proibidas segundo as normas existentes em tratados (Quarta Convenção de Genebra e Protocolos Adicionais I e II) e as normas consuetudinárias aplicáveis em conflitos armados internacionais e não internacionais.
O Estado do Tribunal Penal Internacional inclui a violação e outros tipos de violência sexual na lista dos crimes deguerra e dos atos que constituem crimes contra a humanidade.
Em respeito disso, o congolês Denis Mukwege e a yazidi, ex-escrava sexual do grupo Estado Islâmico, Nadia Murad, ambos Prémio Nobel da Paz em 2018, tentaram pedir o estabelecimento de tribunais nacionais ou internacionais dedicados ao julgamento de autores de violência sexual em conflito. Contudo, a Rússia, a China e os Estados Unidos opuseram-se à criação do mecanismo da justiça, e o grupo de trabalho foi extinto.
O Secretário Geral das Nações Unidas declarou que “é urgente e necessário a forte responsabilização pela violência sexual no conflito”. Milhares de mulheres, homens e crianças foram sujeitos a violação, violação coletiva, escravidão sexual, mutilação sexual, tortura, castração e nudez forçada nas mãos do governo e as forças da oposição com total impunidade nos seus países, e nada foi feito.

É preciso, por isso, converter a cultura da impunidade numa cultura de dissuasão, que garanta que os esforços para documentar e investigar os crimes internacionais priorizem a violência sexual.

A impunidade para a violação sexual e outras formas que correspondem aos crimes previstos no Direito Internacional existe principalmente quando as autoridades nacionais dos países afetados pelos crimes não agiram. Os Estados devem comprometer-se a exercer jurisdição universal sobre crimes de violência sexual e de gênero neste contexto, o que significa que eles o farão mesmo quando os crimes não ocorrerem em seu território ou prejudicarem seus cidadãos ou interesses do Estado.

A prevenção deve ser baseada na promoção dos direitos das mulheres e igualdade de gênero em todas as áreas, antes, durante e após conflitos.

 

Podes contribuir com a tua assinatura para terminar o conflito no Sudão, aqui.

#EndRapeinWar
#SouthSudanDeservedBetter

 

Fontes:

“Eliminação da violência sexual em conflito”, acesso a 16.06.19 (https://www.un.org/en/events/elimination-of-sexual-violence-in-conflict/)

Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas 1820 (2008), acesso a 16.06.19 (https://undocs.org/S/RES/1820(2008))

“A ONU mobiliza-se nos campos de Rohingya para apoiar os bebês de violações; mães jovens enfrentam o estigma”, acesso a 16.06.19 (https://news.un.org/en/story/2018/06/1012372)

“Ferida que arde as nossas almas” Amnistia Internacional 2017, acesso a 15.06.19 (https://www.amnesty.org/en/documents/eur70/7558/2017/en/)

É tempo de terminar a impunidade quanto à violência sexual em conflitos no Sudão do Sul, Amnestia Internacional, 2018, acesso a 16.06.19 (y https://www.amnesty.org/en/latest/campaigns/2018/06/it-is-time-to-end-impunity-for-conflict-related-sexual-violence-in-south-sudan/)

“Combater a violência sexial” (10-13 June 2014) Amnistia Internacional, acesso a 15.06.19 (https://www.peacewomen.org/system/files/global_study_submissions/AI%20recommendations%20UK%20PSVI%20summit%202014.pdf)

“Violência sexual durante conflitos armados”, Comité Internacional da Cruz Vermelha, acesso a 15.06.19 (https://www.icrc.org/pt/content/violencia-sexual-durante-conflitos-armados-uma-tragedia-invisivel)

Roque, Silva (2018) Violência sexual e segurança internacional: despolitização, descontextualização e colonização de uma agenda. Revista Critica de Ciências Sociais, Edição Comemorativa dos 40 anos, p. 165-188