Dia de todas as crianças

por Luísa Freitas, ativista da ReAJ

 

Algo que as organizações que defendem a proteção dos Direitos Humanos e que trabalham para mitigar as suas violações já há muito perceberam, foi que, para tal, é necessário compreender as questões relacionadas com a interseccionalidade dessas violações. Não só a étnia, o estatuto económico, etc., devem ser considerados, como a idade ou a fase de desenvolvimento. Tendo isto em conta, é fácil compreender que é necessário compreender os abusos contra crianças, a violência contra crianças, de uma forma diferente da forma como se compreende os abusos de direitos humanos para pessoas adultas. Não só a dimensão dos problemas é diferente, como há problemas que existem unicamente para as crianças. Deste pensamento, nasce, em 1946 a UNICEF, a que se seguiu a redação da Declaração Universal dos Direitos da Criança (DUDC) em 1959.

Passados 72 anos, será que os 10 princípios da DUDC se encontram cumpridos? Esta é uma pergunta cuja resposta completa seria grande o suficiente para um livro. Ou vários. Mas vamos tentar responder com alguns dados e informações, nem que seja na tentativa de vos deixar com curiosidade para conhecer e pesquisar mais. Vamos por pontos:

 

Princípio 1.º

A criança gozará dos direitos enunciados nesta Declaração. Estes direitos serão reconhecidos a todas as crianças sem discriminação alguma, independentemente de qualquer consideração de [etnia], cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou outra da criança, ou da sua família, da sua origem nacional ou social, fortuna, nascimento ou de qualquer outra situação.

 

Princípio 2.º

A criança gozará de uma protecção especial e beneficiará de oportunidades e serviços dispensados pela lei e outros meios, para que possa desenvolver-se física, intelectual, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade. Ao promulgar leis com este fim, a consideração fundamental a que se atenderá será o interesse superior da criança.

Salientámos a palavra “normal”. Um claro exemplo de uma condição que não respeita de todo este princípio é o estado de guerra ou conflito armado. Neste tipo de ambientes, o desenvolvimento das crianças passa para um plano secundário. São vários os países que recorrem ao uso de crianças soldado (República Democrática do Congo, Sudão do Sul, Iémen, entre muitos outros) e vários os países em que o casamento infantil é permitido (há atualmente 8 países no mundo em que mais de 50% das mulheres com 20-24 anos de casaram antes dos 18 anos). Estes são apenas dois exemplos das várias práticas, bastante prevalentes ainda hoje, que atacam ferozmente o desenvolvimento das crianças.

 

Princípio 3.º

A criança tem direito desde o nascimento a um nome e a uma nacionalidade.

 

Princípio 4.º

A criança deve beneficiar da segurança social. Tem direito a crescer e a desenvolver-se com boa saúde; para este fim, deverão proporcionar-se quer à criança quer à sua mãe cuidados especiais, designadamente, tratamento pré e pós-natal. A criança tem direito a uma adequada alimentação, habitação, recreio e cuidados médicos.

Este princípio é fácil ver que não é respeitado praticamente em país nenhum. Apesar de, nos países mais desenvolvidos economicamente, com serviços nacionais de saúde, a proteção pré e pós-natal esteja praticamente assegurada, a questão da alimentação, habituação ou até mesmo do recreio não o são. A falta de nutrição é responsável por cerca de 40% das 11 milhões de mortes por ano de crianças com menos de 5 anos em países em desenvolvimento. Na Europa, há 25 milhões de crianças e jovens em risco de pobreza. O casamento infantil, as crianças soldado, o tráfico de seres humanos, etc. são realidades que roubam às crianças a sua infância, o necessário recreio.

Princípio 5.º

A criança mental e fisicamente deficiente ou que sofra de alguma diminuição social, deve beneficiar de tratamento, da educação e dos cuidados especiais requeridos pela sua particular condição.

 

O simples facto de não se saber quantas crianças existem no mundo com algum tipo de deficiência, seja ela física, mental ou social (a UNICEF estima que sejam cerca de 93 milhões), já é um indicador de que as suas necessidades não estão a ser correspondidas. A verdade é que, um mundo devastado por guerras e preconceitos, é incapaz de garantir saúde e direitos a quem se mantem nos padrões, e muito menos consegue a quem não mantem.

 

Princípio 6.º

A criança precisa de amor e compreensão para o pleno e harmonioso desenvolvimento da sua personalidade. Na medida do possível, deverá crescer com os cuidados e sob a responsabilidade dos seus pais e, em qualquer caso, num ambiente de afecto e segurança moral e material; salvo em circunstâncias excepcionais, a criança de tenra idade não deve ser separada da sua mãe. A sociedade e as autoridades públicas têm o dever de cuidar especialmente das crianças sem família e das que careçam de meios de subsistência. Para a manutenção dos filhos de famílias numerosas é conveniente a atribuição de subsídios estatais ou outra assistência.

 

A preocupação com a alimentação, cuidado e amor estão bem prementes neste princípio. É óbvio que esta é uma visão um pouco retrógrada (não nos podemos esquecer a década em que foi redigida) da família, mas foquemo-nos dos ideais que se procura transmitir: amor, compreensão, cuidados, ambiente harmonioso, social e economicamente estável. Já temos vindo a falar de que esta, infelizmente, não é uma realidade universal. Basta lembrarmo-nos da política de separação de famílias na fronteira sul dos Estados Unidos da América, que retirou crianças dos braços das suas famílias ou, há mais tempo, na fronteira húngara.

 

Princípio 7.º

A criança tem direito à educação, que deve ser gratuita e obrigatória, pelo menos nos graus elementares. Deve ser-lhe ministrada uma educação que promova a sua cultura e lhe permita, em condições de igualdade de oportunidades, desenvolver as suas aptidões mentais, o seu sentido de responsabilidade moral e social e tornar-se um membro útil à sociedade. O interesse superior da criança deve ser o princípio directivo de quem tem a responsabilidade da sua educação e orientação, responsabilidade essa que cabe, em primeiro lugar, aos seus pais. A criança deve ter plena oportunidade para brincar e para se dedicar a actividades recreativas, que devem ser orientados para os mesmos objectivos da educação; a sociedade e as autoridades públicas deverão esforçar-se por promover o gozo destes direitos.

 

São várias as situações e práticas por todo o mundo que violam por completo o direito à educação das crianças. O uso de crianças soldado é uma delas, em que as crianças pegam em armas em vez de material escolar; o casamento infantil é outro, em que jovens raparigas são obrigadas a abandonar a sua educação para se tornar esposas, donas de casa, mães. A Infelizmente, esta é ainda uma realidade que afeta muito mais as meninas que os meninos, sendo que há 130 milhões de meninas que não vão à escola (recomendamos a leitura do relatório Poverty is Sexist: Why educating every girl is good for everyone) .

  

Princípio 8.º

A criança deve, em todas as circunstâncias, ser das primeiras a beneficiar de protecção e socorro.

 

Princípio 9.º

A criança deve ser protegida contra todas as formas de abandono, crueldade e exploração, e não deverá ser objecto de qualquer tipo de tráfico. A criança não deverá ser admitida ao emprego antes de uma idade mínima adequada, e em caso algum será permitido que se dedique a uma ocupação ou emprego que possa prejudicar a sua saúde e impedir o seu desenvolvimento físico, mental e moral.

 

Infelizmente são vários os casos que mostram como este princípio não é respeitado: desde crianças a ser exploradas em minas a crianças requerentes de asilo presas nos Estados Unidos da América, as violações deste princípio amontoam-se um pouco por todo o mundo.

 

 

Princípio 10.º

A criança deve ser protegida contra as práticas que possam fomentar a discriminação racial, religiosa ou de qualquer outra natureza. Deve ser educada num espírito de compreensão, tolerância, amizade entre os povos, paz e fraternidade universal, e com plena consciência de que deve devotar as suas energias e aptidões ao serviço dos seus semelhantes.

 

O primeiro e o décimo princípios podem servir como um apanhado de tudo. Vivemos num mundo injusto, que nega o acesso aos direitos. A Humanidade, além de falhar drasticamente para com as crianças, falha também em transmitir tolerância e ideais de igualdade de paz. A negação de direitos varia também consoante as características das crianças: rapazes têm mais acesso a educação e durante mais tempo que as raparigas (por motivos históricos ou da organização das sociedades), sofrem menos ataques à sua integridade física (a violação, casamento infantil, tráfico,… são mais prevalentes no sexo feminino); em países mais ricos a negação dos direitos é muito menor que em países mais pobres; crianças de minorias étnicas ou religiosas sofrem duplamente: podemos falar da perseguição das crianças albinas no Malawi, da segregação em escolas de crianças ciganas, crianças trans sofrem para verem reconhecida a sua identidade, tanto perante a lei, como nas suas famílias, como nas suas comunidades, como nas escolas, só para mencionar aspetos que ainda não havíamos mencionado neste texto.

 

Infelizmente, o mundo de hoje não é perfeito, e falha miseravelmente na proteção das crianças e dos seus direitos. Contudo, não podemos deixar de reconhecer que foram feitos avanços consideráveis nos últimos 50 anos. O número de crianças fora da escola tem vindo a diminuir todos os anos, o que é notável principalmente tendo em conta que a população mundial tem aumentado também, bem como tem diminuído o número de crianças em extrema pobreza ou em risco de pobreza. Também é importante mencionar os enormes esforços na saúde, que conseguiram a erradicação de várias doenças nas últimas décadas, nomeadamente através da vacinação.

 

É claro que houve muitos passos certos dados nestes anos, e também é claro que temos ainda muitos passos por dar. É por isso que pedimos a tua ajuda para cada um deles. Hoje, pedimos a tua assinatura para tornar o acolhimento de pessoas refugiadas mais humano, mais respeitador e menos violento, principalmente para as crianças envolvidas neste processo que por si só já é terrível.