A luta contra o tráfico e a escravatura – Dia Internacional de Lembrança do Tráfico Negreiro e da sua Abolição

Por Ianira Vieira e Beatriz Mestre

Ativistas da ReAJ – Rede de Ação Jovem

 

“Over four centuries, more than 18 million people were forcefully removed from Africa to the Americas (including the Caribbean) and Europe. For those who survived the horrific middle passage, thousands of them would later perish as a result of the cruel and inhumane treatment meted out to them and from the appalling conditions in which they had to exist on the plantations. The Permanent Memorial will serve as a reminder of the legacy of the slave trade. It will provide future generations an understanding of the history and consequences of slavery and serves as an educational tool to raise awareness about the current dangers of racism, prejudice and the lingering consequences that continue to impact the descendants of the victims today (…)”. [1]

(UN Slavery Memorial, Mission Statement)

 

Assinalam-se hoje, no dia 23 de agosto de 2021, 230 anos do início da revolta de escravos e escravas das plantações de Saint-Domínguez, espaço que correspondente no presente ao território de Haiti e República Dominicana.

Assim como é popularmente designada, a Revolta Haitiana começou com uma cerimónia de vudu liderada pelo “hungã” ou sacerdote Dutty Boukmn, em Bois Caïman no dia 23 de agosto de 1791 e perdurou até 1804.

Como desfecho da Revolução haitiana, a República do Haiti tornou-se a primeira república governada por pessoas de ascendência africana.

Posto isto, o marco histórico que é a Revolução Haitiana produziu efeitos catalisadores que resultaram na abolição da escravatura não só no Haiti, como em várias partes de mundo em períodos de tempo distintos por conta das diversas experiências das comunidades alvos de comércio transatlântico de escravos e escravas. A título de exemplo, a abolição da escravatura no Haiti ocorreu com a Revolução Haitiana, Portugal aboliu a escravatura em todo o seu território em 1858 e o Brasil só aboliu a escravatura em 1888.

A particularidade de experiências reverteu para os diferentes legados que nos foram deixados pela escravatura. Em boa parte dessas comunidades, a abolição da escravatura não foi acompanhada por medidas de integração social, política e económica, resultando, até hoje, na marginalização das pessoas de descendência africana.

Desde a altura em que foi estabelecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura em 1998, o Dia Internacional de Lembrança do Tráfico Negreiro e da sua Abolição tem como propósito averiguar a memória e refletir sobre o legado histórico da escravatura.

Além disso, o intento do dia também é para prevenir preconceitos raciais, que serviram como suporte para justificar a barbaridade do sistema esclavagista. [2]

Com o desígnio de reconhecer a história oral sobre escravatura e aprofundar conhecimentos sobre o tema numa abordagem multidisciplinar, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura institui, em 1994, o projeto conhecido como «Rota de Escravatura».[3]

Apesar do comércio de escravos e do sistema esclavagista terem sido objeto de investigações, destaca-se, a título de exemplo, o trabalho da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura no registo de tradições e evidências orais e investigação arqueológica, sendo ainda escassa a investigação acerca de determinados tópicos.[4]

Desta forma, um dos assuntos menos pesquisados diz respeito aos interesses financeiros e formas de financiamento envolvidos no tráfico de pessoas.[4]

Do mesmo modo, persiste um grande desequilíbrio no que diz respeito às  fontes documentadas e disponíveis, tanto em relação aos testemunhos das pessoas sujeitas à escravatura como em relação aos documentos pertencentes aos senhores de escravos e escravas.

Exemplificado, existem mais registos do caso britânico em comparação com os registos escassos dos casos franceses, espanhóis e portugueses.[4]

Igualmente, as formas de resistência de escravos e escravas têm sido pouco averiguadas, principalmente o caso das revoltas lideradas por mulheres escravas.[4]

Além do filme “Harriet”, que retrata essa realidade, foi publicado recentemente o livro na forma de memória gráfica ilustrado por Hugo Martínez “Wake: The Hidden History of Women-Led Slave Revolts” da historiadora, escritora e ativista estadunidense Rebecca Hall.

Nas palavras da autora, numa entrevista ao jornal britânico The Guardian: “If you’re a black child, you learn about slavery, but you don’t learn about slave resistance or slave revolt (…)”. [5]

Assim como é imperativo investigações e estudos acerca das sobre formas de servidão estabelecidos após a abolição da escravatura, como é o caso do trabalho forçado e do envio de missionários para África.

Em complemento há 20 anos atrás, em 2001, o tráfico de pessoas e a escravatura passaram a reconhecidos como crimes contra a humanidade pelo Estatuto do Tribunal Penal Internacional. Atualmente, face aos vários marcos históricos, a Humanidade depara-se perante alguns desafios como a discriminação racial e novas formas de escravatura. Sem embargo de a escravatura na sua forma primitiva ter sido abolida, continuam a existir formas de servidão que são identificadas como “escravatura moderna” e que são meramente “menos bárbaras”. [4]

Em Portugal, de tempos a tempos, surgem casos mediáticos de redes de tráfico de pessoas para exploração laboral. O tráfico de pessoas para exploração laboral é a principal causa de tráfico de pessoas no país, seguida de perto pelo tráfico das mulheres para fins de exploração sexual, pelo que uma abordagem de género é imprescindível. [6]

Os casos como de apanhadores de amêijoa no Tejo, apanhadores de fruta na Costa Vicentina, e o caso mais recente de Odemira demonstram que Portugal continua a ser um país com um passado mal resolvido e dificuldades em combater o racismo e a escravatura moderna.[7]

Numa entrevista ao Jornal Económico, Pedro A. Neto, Diretor Executivo da Amnistia Internacional Portugal, destaca que Portugal tanto é um país de trânsito como um país de destino. [8] De modo igual, a RTP reportou que a Amnistia Internacional tem recebido diversas denúncias de tráfico de pessoas. [9]

Lembrar, abordar e retratar: a obstrução e ignorância de factos históricos documentados dificultam a reconciliação.

Para além disso, assim como é popularmente dito, ‘aprendemos com o passado a não cometer os mesmos erros no futuro’. Esta afirmação aplica-se a Portugal, que esteve na posição dianteira no comércio de escravos e escravas.

Portanto, é preciso que Portugal tome as medidas necessárias para combater esta atrocidade. Visto que o tráfico de pessoas está ligado à desigualdade e à discriminação baseadas na nacionalidade, género, etnia, é recordado que Portugal ainda não ratificou a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias e não tem desenvolvido políticas que atenuem os fatores de risco.

Além do trabalho de fiscalização realizado pela Autoridade para as Condições do Trabalho, Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e forças de polícia nacionais, cujo reforço é urgente, todas e todos temos responsabilidade de denunciar possíveis casos de escravatura e realizar melhores escolhas como consumidoras e consumidores de produtos e serviços.

 

Sejamos corajosas e corajosos.