Crise da Habitação-Entrevistas

Por Andreia Filipa e Nádia Pedro

Ativistas da ReAJ – Rede de Ação Jovem

A crise habitacional em Portugal é algo que tem vindo a tomar proporções significativas, das quais resultam várias infrações de direitos básicos de vida – direitos humanos que ficam em segundo e terceiro plano quando a mercantilização das cidades faz parte dos principais focos económicos do país. Posto isto, no passado ano 2021, a ReAJ procurou contactar com estruturas e indivíduos que fazem do seu trabalho o ativismo, mobilizando-se em prol de combater esta injustiça social.

Assim, um dos indivíduos que aceitou fazer parte do nosso conjunto de entrevistas que abordam este problema, foi o fotojornalista Gonçalo Fonseca que, afirma “o que me move sempre é amplificar as vozes das pessoas que eu fotografo e poder trazer alguma luz a temas que se calhar não são tão conhecidos como deveriam ser.” sendo inerente ao seu trabalho, o teor ativista que procuramos. Tendo já trabalhado em vários temas, em diversos países, foi no seu regresso há cerca de dois anos, a Portugal e à sua cidade de Lisboa que o seu trabalho “New Lisbon” (Nova Lisboa) se iniciou. Nesta entrevista Gonçalo levantou várias questões fulcrais para compreendermos o quão real este problema é, bem como a urgência em fazer parte das lutas já existentes, que procuram combater esta violação de direitos humanos que não se resume só a Lisboa, nem tão pouco apenas a Portugal.

Deparando-se com a realidade dos seus amigos, habitantes em Lisboa que tiveram oportunidades de acesso ao ensino superior e salários acima do ordenado mínimo nacional, que ainda assim, não alcançaram a vida que objetivaram devido aos preços praticados pelos proprietários/arrendantes – que são grandes empresas que possuem aglomerados de apartamentos e inflacionam os preços das rendas, mercantilizando a habitação, e como o fotojornalista referiu “E quando nós falamos da habitação nesses moldes, estamos a tirar-lhe aqui, imensa humanidade” -, o seu pensamento alargou-se para as pessoas que não têm estes níveis de vida, integrando-se em setores socioeconómicos diferenciados e de precariedade. Como o próprio indica, “(…) o meu objetivo com o trabalho “Nova Lisboa” era poder dar a conhecer estas histórias que, de outra maneira, ficariam escondidas atrás de portas fechadas.”.

 

No decorrer da conversa debatemos como, numa primeira instância, há uma associação direta a pessoas de idade acabarem por ser as mais afetadas com esta crise habitacional, porém, tanto na conversa como na leitura do site de Gonçalo onde partilha as histórias que traz para fora de portas anteriormente fechadas; compreendemos que esta crise é intergeracional. Devido à falta de oportunidades para as pessoas que não se inserem na classe média alta da sociedade, a necessidade de procurar soluções mais dramáticas – como ocupação de casas, viver em sítios ilegalmente – torna-se recorrente, até porque a situação de despejos tem sido frequente.

Não podendo ignorar o contexto pandémico que temos vivido, questionámos também, de que maneira a pandemia se manifestou na crise habitacional e Gonçalo contou-nos uma história que decorreu durante este período. Um pai já desempregado e uma filha que ajudava o pai, trabalhando num café, acabou por ficar desempregada também, e ambos ficaram sem nada, tendo de ocupar uma casa na zona da Graça – o que é um caso representativo de tantos outros, que podemos detetar através dos pedidos de apoios sociais para pagamento de rendas, para alimentação, que cresceram significativamente e que não têm perspetiva de melhorar. Mais, perguntámos se tinha conhecimento da ocorrência de algum despejo durante a pandemia e, como nos foi dito, apesar de ser ilegal, aconteceram; felizmente, não de forma generalizada – exemplificando com a situação do coletivo Seara  que era um centro social de apoio a pessoas em situação de sem-abrigo localizado num prédio em Arroios ocupado de forma ilegal, que se encontrou sem soluções pois, esses prédios fazem agora parte de um projeto imobiliário de luxo onde T0’s começam em valores de 350 mil euros.

Ainda, é importante procurar compreender as causas que resultaram nesta crise. Assim sendo, Gonçalo mencionou algumas das que considera serem mais relevantes, tais como a explosão do mercado de Airbnb’s e de alojamento temporário que “nos últimos 7 anos, aumentou 30 vezes o seu tamanho” fazendo de Lisboa a cidade europeia com mais Airbnb’s per capita o que “cria uma pressão enorme no tecido social da cidade” contribuindo também para uma série de questões do foro psicológico associadas às pessoas que vivem num contexto de incerteza e precariedade constantes. Sem esquecer o impacto dos baixos salários nacionais, Gonçalo mencionou ainda dados de 2020 em que o salário médio era aproximadamente 800€ e a média das rendas em Lisboa ultrapassavam os 900€.

Num mundo em constante mudança é fundamental adaptarmos o nosso ativismo às necessidades do nosso meio envolvente e também a nós próprios, por isso mesmo deixamos aqui transcrito o conselho de Gonçalo acerca do que podemos fazer acerca deste problema habitacional e de todas as outras problemáticas sociais existentes, sendo este o seguinte: “(…) sabemos que é muito difícil mudar as coisas, mas isso não nos impede de continuar a tentar (…) se tens muito dinheiro, doa algum dinheiro, se tens muito tempo doa algum do teu tempo; se és músico faz uma música. Para mim sempre foi a minha maneira de ver as coisas e, mais importante do que tudo, é darmos a nossa contribuição, por mais pequena que seja, e uma das mais importantes é votarmos.”.

Ainda, e para terminar, perguntámos ao Gonçalo se gostaria de acrescentar algo ao qual ele nos respondeu que queria salientar a importância do ativismo jovem em Portugal, que considera ter trazido vários temas, como as manifestações pelo clima, para cima da mesa política e apela, ainda, a que a luta pela habitação tenha maior aderência pois são precisas mais pessoas nesta luta, porque “juntos vamos ser mais fortes”.

 

Realizamos ainda uma entrevista com a Stop Despejos, representada pela Joana e a Fanny que nos contaram um pouco sobre o trabalho desenvolvido pela Stop e como tem sido esta luta pela habitação. Joana entrou na Stop Despejos em finais de 2018 enquanto Fanny se encontra com a Stop desde o início. “Foi a partir de um projeto que era a caravana pela habitação, que era uma caravana que passava por vários bairros sociais. Jamaica, Bairro da Torre e outros. Para falar sobre a situação da habitação e, a partir daí, sem dizer se há necessidade de ter um grupo e um coletivo maior do que a Habita, porque um dos que organizam a Caravana pela Habitação era a Habita e eles depois juntaram-se, pensaram depois desta caravana, seria melhor juntar muitas pessoas para podermos ter massa para evitar despejos. Então criou-se o coletivo da Stop Despejos. Que depois não serviu só para despejos, mas também para prevenir, falar sobre as questões da habitação, direito pela cidade e o espaço Público.”. Ambas sentiram a necessidade de se envolverem na causa após terem tido contacto não só com a realidade de várias pessoas que enfrentam diversas dificuldades em arranjar uma casa digna e com condições, mas também, como no caso de Fanny, por ter enfrentado estas mesmas dificuldades.

As histórias que nos trouxeram colocam em evidência não só a dificuldade em conseguir habitação devidos aos preços exorbitantes praticados muitas vezes por imoveis em condições degradantes, mas também os próprios abusos realizados pelos proprietários.

Questionámos sobre a forma como a pandemia veio afetar o contexto da habitação e quais o principais problemas que criou e/ou agravou. Joana e Fanny explicaram como a pandemia agravou uma série de problemas já existentes como o aumento do desemprego que se traduziu no aumento da precariedade: “Com este aumento significativo do desemprego, muitas pessoas deixaram de conseguir pagar rendas que já eram demasiado altas. Portanto, havia este problema, antes da pandemia, do mercado imobiliário completamente desregulado, em que não há um teto máximo de rendas, em como estavas a dizer, uma casa minúscula e sem condições, se for preciso até pedem 600 euros ou mais.”. Devido a impossibilidade de pagar as rendas muitas pessoas foram confrontadas com despejos, mesmo durante a altura em que a prática dos mesmos foi suspensa devido a pandemia: “ (…) no início da pandemia houve uma suspensão dos despejos legalmente. Isto mesmo assim não impediu os despejos de acontecer. Nós ainda acompanhamos uns quantos casos de bullying por parte dos senhorios, que depois também se concretizou em situações de despejo.” Infelizmente para além da dificuldade em arranjar uma casa é ainda mais difícil arranjar uma com contrato. Muitas pessoas não possuem contratos de arrendamento em Lisboa o que as deixa sem qualquer proteção legal e á mercê da vontade dos senhorios.

Joana e Fanny trouxeram-nos duas histórias que demonstram as dificuldades que esta crise da habitação gera. Joana falou-nos sobre o caso do Diego, um brasileiro que ao ficar desempregado devido à pandemia ficou impossibilitado de pagar a renda. Assim, a senhoria respondeu com várias ameaças e ações de bullying para que Diego deixa-se a casa. A senhoria fez vários estragos na casa, sobretudo fechaduras com o objetivo de forçar Diego a sair. Quando percebeu que os seus esforços foram em vão levou duas pessoas a casa para o obrigarem a sair á força. Esta tentativa de despejo levou ao aparecimento da polícia que ao constatar as evidências de abuso e após ouvir vários relatos de testemunhas limitou-se apenas a assistir alegando que a senhoria estava no seu direito enquanto proprietária. A Stop Despejos conseguiu mobilizar um número de pessoas considerável que fizeram pressão para impedir o despejo e falaram com os polícias presentes. Felizmente, com a ajuda Stop Despejos o despejo foi impedido. No entanto Diego acabou por ser obrigada a sair de casa semana mais tarde.

A segunda história foi contada por Fanny, sobre a senhora Nazaré com cerca de 80 anos de idade sem rendimentos e que sofria de diabetes, que se viu obrigada a deixar a sua casa onde viveu durante anos através de uma ordem de despejos. A Stop Despejos realizou uma campanha através do Facebook para que Nazaré não fosse despejada e tentou que a Câmara de Lisboa lhe encontra-se uma casa nova. Nazaré acabou por ir viver para uma casa da proteção civil na zona do Castelo que nem frigorifico tinha. Por fim, Fanny dá enfase ainda aos vários casos de mulheres solteiras, muitas vezes com filhos, que se veem obrigadas a ocupar casas ilegalmente por não conseguirem uma habitação e que diversas vezes acabam por ser levadas pela polícia. A Stop Despejos tenta fazer pressão junta da Câmara mas a solução oferecida é atribuir-lhes um quarto numa pensão com horários de entrada e saída.

O maior problema que a Stop enfrenta é saber quando um despejo vai ocorrer, uma vez que o mesmo pode acontecer a qualquer dia e hora sem aviso prévio. A Stop por várias vezes recebe telefonemas às sete da manhã sobre despejos a acontecer no momento. A Stop Despejos faz ainda uma série de campanhas e ações de consciencialização e informação através da realização e publicação de textos, vídeos, abaixo-assinados e entrevistas sempre relacionado com um tema específico: “(…) campanhas a apoiar a ocupação das casas pelas mulheres e outras pessoas, porque não tinham outra opção porque o Estado não lhes dava opção. (…) Fizemos uma campanha também pelo espaço público em relação ao Martim Moniz porque estavam a vedar e queriam transformar aquilo num estilo de centro comercial ao ar livre e deixar uma praça pública às mãos dos privados.”. “Antes da pandemia quando estávamos a acompanhar um desses casos que a Fanny estava a relatar (…), quando entramos em processo de negociação com as instituições era muito comum irmos à Câmara ou acompanharmos as pessoas à reunião na Câmara, de forma a fazer pressão para que as suas necessidades fossem cumpridas. (…) Recentemente estivemos junto ao Ministério das Finanças há uns meses, a propósito da aprovação do Orçamento de Estado. Isto foi muito ignorado pela comunicação social, mas estivemos lá.”

Falou-se ainda também da dificuldade acrescida para a população emigrante ter acesso a habitação e da falta de resposta e de soluções por parte das instituições governamentais. Joana e Fanny referem a necessidade de tornar a “luta realmente coletiva”, pois a mesma só se faz com o contributo de todos. O objetivo da Stop Despejos é lutar “(…) para a construção de uma cidade realmente inclusiva, realmente acessível a toda a gente. Somos pelo fim dos despejos. Uma cidade feita para as pessoas.”.

Assim, agradecemos a participação de Gonçalo Fonseca e de Joana e Fanny em representação da Stop Despejos, nestas entrevistas e neste trabalho de consciencialização pela situação da habitação em Portugal. Convidamos-vos a visitar o site de Gonçalo, para conhecerem de perto mais histórias como as da filha e do pai que mencionámos acima –  https://www.goncalofonseca.net/ , a visitar as páginas da Stop Despejos e da Habita- https://stopdespejos.wordpress.com/ , https://www.facebook.com/stopdespejoslisboa/, https://habita.info/ e também, a juntarem-se à luta pelos direitos humanos e, claro está, pela habitação. Saindo à rua aderindo a manifestações, consciencializando o nosso grupo mais próximo ou através nossas redes sociais, toda a luta é válida e deve adequar-se à realidade de cada um de nós.