Criminalização de condutas que atentam contra os direitos fundamentias dos idosos – Análise | OLGJAI
O processo legislativo pode ser consultado aqui.
Objectivo: introduzir normas no Código Penal que sancionam comportamentos contra os direitos fundamentais dos idosos, criando 5 novos tipos legais de crimes e agravando 3 outros crimes já existentes.
Tramitação na Assembleia da República: apresentado em 4 de Dezembro de 2015 pelos Grupos Parlamentares do PSD e do CDS/PP, foi discutido e aprovado na generalidade na reunião plenária de dia 11 de Dezembro, encontrando-se desde então na fase de discussão na especialidade na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
Relaciona-se com:
Descrição:
1.O projecto de lei adita ao Título I do Código Penal português (“Crimes contra as Pessoas””) um novo Capítulo que visa consagrar novos crimes contra direitos fundamentais dos idosos (Capítulo IX – Dos crimes contra direitos fundamentais dos idosos).
2. O projecto de lei cria um novo artigo, com a epígrafe “Idosos”, que prevê que constituam crimes puníveis com pena de prisão até dois anos, ou com pena de multa até 240 dias, as seguintes condutas:
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- Lavrar ato notarial que envolva pessoa idosa que se encontre, à data, notoriamente limitada ou alterada nas suas funções mentais, em termos que impossibilitem a tomada de decisões de forma autónoma ou esclarecida, sem que se mostre assegurada a sua representação legal;
- Coagir uma pessoa idosa que se encontre, à data, notoriamente limitada ou alterada nas suas funções mentais, em termos que impossibilitem a tomada de decisões de forma autónoma ou esclarecida, a outorgar procuração para fins de administração ou disposição dos seus bens;
- Negar o acolhimento ou a permanência de pessoa idosa em instituição pública ou privada destinada ao internamento de pessoas idosas, por recusa desta em outorgar procuração para fins de administração ou disposição dos seus bens ou em efetuar disposição patrimonial a favor da instituição em causa;
- Abandonar pessoa idosa em hospitais ou outros estabelecimentos dedicados à prestação de cuidados de saúde, quando a pessoa idosa se encontre a cargo do agente;
- Impedir ou dificultar o acesso de pessoa idosa à aquisição de bens ou à prestação de serviços de qualquer natureza, em razão da idade.
3. O projecto de lei prevê também que constitua circunstância agravante:
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- Dos crimes de injúria, difamação e calúnia, ser a atuação dirigida a pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;
- Do crime de burla, quando a atuação envolver um plano, campanha ou promoção destinados a induzir alguém a adquirir bens ou serviços que não solicitou previamente, executada através de contactos telefónicos da iniciativa do promotor do plano, campanha ou promoção.
Análise:
- Com 20% da população portuguesa constituída por maiores de 65 anos, a promoção e protecção dos direitos dos idosos é um desafio que se impõe ao sistema político nacional e à sociedade civil e que exige uma especial atenção ao sistema de justiça português. Portugal é um dos países mais envelhecidos da União Europeia, com a quarta maior percentagem de idosos na UE.
- Os cidadãos seniores são um grupo particularmente vulnerável de pessoas, pela solidão e o isolamento em que muitos se encontram, pela falta de literacia de que muitos sofrem e pela elevada fragilidade física e psicológica que muitos apresentam, o que torna estes cidadãos mais permeáveis a actos de violência, abuso, abandono ou ofensas ao seu património. E tanto as associações nacionais de apoio à vítima, como a Provedoria de Justiça e a Procuradoria-Geral da República registam, nos últimos anos, um aumento de actos criminosos contra idosos.
- Por tudo isto, o GJAI não pode deixar de avaliar de forma positiva a preocupação expressa pelo legislador com os direitos fundamentais dos idosos e, portanto, reconhecer como meritórios os fundamentos e a finalidade do presente projecto de lei.
- No entanto, sempre que se opera a introdução de novos tipos legais de crime e, assim, se acentua a dimensão repressiva do sistema legal, há que ter em consideração o princípio da intervenção mínima do direito penal e os correspondentes princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação.
- Da análise detalhada dos novos tipos legais agora propostos resulta, em primeiro lugar, que quase todas as condutas descritas são já criminalizadas na lei penal portuguesa, como os crimes de violência doméstica, maus tratos, ofensas à integridade física, roubo ou burla – crimes estes que, nalguns casos, são até punidos com penas mais graves do que as agora previstas – e, depois, que o facto de serem praticados contra pessoas especialmente vulneráveis em razão da idade é já uma circunstância agravante da pena aplicável.
- Também o novo crime de abandono, pelos familiares ou outros cuidadores informais, de “pessoa idosa em hospitais ou outros estabelecimentos dedicados à prestação de cuidados de saúde, quando a pessoa idosa se encontre a cargo do agente” não deixa de suscitar alguma preocupação pelo facto desta norma poder não atingir o fim a que se propõe, e até produzir o contrário do que se propõe, já que ela pode levar a que, para contornar o crime, o “agente” (por várias razões, de que se destaca a falta de condições económicas) venha a abandonar o idoso noutro local que não o hospital, até mesmo a rua, ficando este sem acesso a cuidados médicos e, portanto, numa situação de ainda maior desprotecção. Estamos aqui, com efeito, perante uma diversidade de situações e de razões que podem levar à inexegibilidade de um determinado comportamento por parte dos cuidadores, ou à redução da censura desse comportamento, o que poderá dispensar uma intervenção penal. Pelo que o conhecimento empírico da realidade do abandono de idosos em hospitais deverá implicar necessariamente uma avaliação profunda dessa realidade, avaliação que deve preceder o momento legislativo. Finalmente, o projecto de lei apresenta alguns problemas de técnica legislativa, nomeadamente quando não procede à determinação do conceito de “idoso”, remetendo para um conceito indeterminado que deve ser a excepção em direito penal, ou quando usa esse mesmo conceito como epígrafe do novo artigo, quando a técnica normalmente usada na lei penal é a identificação do crime com base na ofensa e não propriamente na vítima.
- Com estas ressalvas e com aquela avaliação positiva da intenção do legislador, o que nos parece sobretudo relevante é assegurar que as medidas já existentes são efectivamente postas em prática pela comunidade política, jurídica e civil, e que sejam criados outros mecanismos necessários para suprir as dificuldades estruturais nesta matéria, com maior integração da intervenção nos domínios civil, criminal e de saúde. Mecanismos de criação de condições mais favoráveis à prestação de cuidados em casa aos idosos, por exemplo, com acompanhamento técnico adequado, possibilidade de justificação das faltas dos cuidadores, comparticipação pelo Estado das despesas com cuidados no domicílio, ou medidas fiscais compensatórias. Mas também mecanismos e medidas de prevenção, com políticas pró-activas para a protecção dos direitos e sua consciencialização, dirigidas aos cidadãos seniores e também à sua comunidade próxima, sobretudo a comunidade médica e os serviços públicos, de forma a mobilizar toda a sociedade para esta causa.