Brunei: do progresso ao retrocesso
«Para que toda a pena não seja uma violência
de um ou de muitos contra um cidadão particular,
deve ser essencialmente pública, pronta, necessária,
a mais pequena possível nas circunstâncias dadas,
proporcional aos delitos, fixada pelas leis.»
Cesare Beccaria, Dos Delitos e das Penas
De acordo com uma investigação levada a cabo por Rachel Chhoa-Howard, investigadora da Amnistia Internacional no Brunei, este país, situado no Sudeste Asiático, aprovou uma série de alterações ao seu Código Penal, cuja entrada em vigor se previa para o passado dia 3 de abril. O Código Penal do Brunei passou, assim, a consagrar, no seu sistema repressivo, a pena de morte por apedrejamento em casos de Homossexualidade, que neste país é tipificada como crime, bem como a aplicação de penas corporais – v.g., amputação de braços -, consagrada para sancionar crimes contra a propriedade, como o Roubo.
Destacam-se aqui, de forma gritante, uma série de violações de direitos, como a vida, a integridade física e moral, liberdade, comummente aceites por todos nós, sem necessidade de positivação, por se tratarem de bens jurídicos inerentes ao próprio ser Humano, e que, portanto, têm de ser respeitados em qualquer parte do mundo, constituindo o limite de atuação de qualquer Estado, quando revestido do seu ius puniendi e ao qual o Estado do Brunei não é, nem pode, ser exceção.
Embora o Código Penal do Brunei tipifique comportamentos que nem sequer deveriam ser tidos como crime – como é o caso da Homossexualidade – mesmo perante a criminalidade mais grave, a atuação de qualquer Estado deve ter sempre como pressuposto e limite a dignidade da pessoa. A dignidade da pessoa humana, enquanto princípio jurídico universal, está consagrada, desde logo, no Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e posteriormente desenvolvido no seu artigo 1.º, onde naturalmente coabitam o respeito pela vida, enquanto bem jurídico irrenunciável, imutável e intemporal, intrínseco à qualidade de ser humano. O respeito pela vida do ser humano encontra-se também consagrado no artigo 3.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, completada depois por outros instrumentos de Direito Internacional Público, como no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos – artigo 6.º e, a nível Europeu, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 2.º), completado pelo respetivo protocolo n.º 6, referente à Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais Relativo à abolição da Pena de Morte (artigo 1.º).
Todas estas alterações ao Código Penal do Brunei colocam igualmente em causa o direito à integridade pessoal que abrange, naturalmente, a integridade física e moral de qualquer ser humano, com a consequente proibição de tortura, maus tratos e outras penas cruéis, desumanas e degradantes, também consagrados nos instrumentos jurídicos internacionais anteriormente referidos. A este nível importa destacar a Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, assinado pelo Estado do Brunei, embora ainda não ratificado.
Esta Convenção Internacional impõe que cada Estado se abstenha de praticar qualquer ato de tortura, isto é, «qualquer ato pelo qual uma violenta dor ou sofrimento, físico ou mental, é infligido intencionalmente a uma pessoa, com o fim de se obter dela ou de uma terceira pessoa informações ou confissão; de puni-la por um ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir ela ou uma terceira pessoa; ou por qualquer razão baseada em discriminação de qualquer espécie, quando tal dor ou sofrimento é imposto por um funcionário público ou por outra pessoa atuando no exercício de funções públicas, ou ainda por instigação dele ou com o seu consentimento ou aquiescência – artigo 5.º da Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (sublinhado nosso).
Começamos este texto com uma alusão à grande obra de Cesare Beccaria, «Dos Delitos e das Penas», pois, se se fala em tortura e pena de morte, é impossível não se invocar o nome deste Iluminista que, denunciando estas práticas desumanas por parte das Entidades Estaduais de seu tempo, muito contribuiu para humanizar o Direito Penal.
Esperemos, assim, que o seu espírito nos ilumine.
Grupo de Juristas da Amnistia Internacional – Portugal
Atualização: no dia 6 de maio de 2019, o sultão do Brunei determinou uma moratória para a aplicação destas medidas no Código Penal.