Autodeterminação de género – Análise | OLGJAI
Autodeterminação de Género – Análise do Projecto de Lei 242/XIII
O processo legislativo pode ser consultado aqui.
Conteúdos: I – Descrição; A – Motivação do projecto de lei; B – Alterações propostas relativamente ao Registo Civil; C – Medidas Propostas no âmbito da Saúde; D – Medidas Propostas contra o generismo e a transfobia; E – Medidas Propostas nas áreas da Educação, Ciência e Ensino; F – Medidas Propostas no âmbito laboral; II – Análise; A – Considerandos; B – Análise genérica; C – Registo Civil; D – Promoção da Igualdade, Saúde, Educação e Trabalho
I – Descrição
A – Motivação do projecto de lei
a) O presente projecto de lei visa consagrar o direito à autodeterminação de género, assim como os termos do seu exercício, designadamente no concernente à alteração do registo civil, à proteção específica em matéria de acesso à saúde, educação, trabalho e proteção social.
b) Tem por base o princípio da diversidade de género, defendendo que a concepção binária do género, masculino e feminino, decorrente da apreciação visual dos órgãos genitais, é manifestamente insuficiente e atentatória do direito à autodeterminação de género.
c) Considera que a definição de género deve atender a um conceito não somente biológico, mas principalmente psicossocial, devendo as características de personalidade sobrepor-se às anatómicas.
d) Consequentemente, a livre autodeterminação de género deve ser consagrada como um direito humano, fundamental e imprescindível para o exercício do livre desenvolvimento da personalidade.
e) O Projecto-lei pretende atender às necessidades legais e sociais das pessoas trans e de género diverso, de modo a que possam desenvolver-se no género a que pertencem e desenvolver as suas potencialidades humanas.
f) Alicerça-se na comunidade científica e social que advoga a definitiva despatologização da diversidade de género, considerando a mesma como uma manifestação da diversidade dos seres humanos.
g) O projecto de lei refere que a diversidade de género tem vindo a ser reconhecida a nível internacional, europeu e nacional.
h) Menciona, designadamente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no respeitante aos princípios de igualdade, liberdade e não discriminação, e ainda a Carta dos Direitos Fundamentais.
i) À luz do presente projecto, a identidade de género consiste na vivência interna e individual de cada pessoa, incluindo a vivência pessoal do seu próprio corpo e outras expressões de género, como o nome, vestuário, discurso ou gestos.
j) Assim, a identidade de género pode corresponder, ou não, ao género atribuído à nascença.
k) Por expressão de género entende-se “a manifestação pessoal da identidade de género e/ou aquela que é percebida pelos outros.”
l) Deste modo, a identidade de género poderá envolver a modificação da aparência ou funções do corpo, por via farmacológica, cirúrgica, ou de outro modo, mas sempre com o garante da livre vontade do próprio.
m) As alterações ao registo civil poderão ser requeridas por cidadãos com idade igual ou superior a dezasseis, de nacionalidade portuguesa, ou com autorização de residência válida. Caso o interessado seja menor de dezasseis anos, o requerimento terá de ser efectuado pelos seus representantes legais, mediante consentimento expresso do menor. Na eventualidade de recusa dos representantes legais, o menor pode intentar acção judicial para o efeito, sendo representado por curador.
n) Em caso algum, o Requerente poderá ser obrigado a submeter-se a tratamento farmacológico, procedimento médico, ou exame psicológico que limite a sua autodeterminação de género.
o) Em face do exposto, o projecto-lei visa acautelar as necessidades legais e sociais das pessoas trans e de género diverso, nomeadamente, no respeitante ao registo civil, à saúde, educação, trabalho e proteção social.
B – Alterações propostas relativamente ao Registo Civil
a) O projecto de lei pretende revogar o regime de Mudança de Sexo e de Nome Próprio no Registo Civil, actualmente em vigor por força da Lei n.º 7/2011, de 15 de Março.
b) Deixaria de ser necessário o relatório médico comprovativo de diagnóstico de perturbação de identidade de género.
c) A idade mínima para requerer a alteração do nome próprio passaria dos dezoito anos para os dezasseis.
d) Os menores de dezasseis anos passariam também a poder exercer este direito, devendo o requerimento ser apresentado pelos seus representantes legais, mediante consentimento expresso do menor.
e) Caso os representantes legais se recusem a efectuar o requerimento referido na alínea anterior, o menor poderá intentar acção judicial com esse propósito, representado por curador para esse efeito, nos termos do n.º 2 do artigo 1881.º do Código Civil.
f) No caso previsto na alínea precedente, o tribunal deverá decidir de acordo os princípios da autonomia progressiva e do superior interesse da criança, constantes da Convenção sobre os Direitos da Criança.
g) O Requerimento passará a poder ser apresentado, também, por titulares de autorização de residência válida, incluindo a autorização de residência provisória atribuída a requerentes de protecção internacional, nos respectivos consulados.
h) Os números de identificação pessoal do Requerente manter-se-ão depois da alteração do registo civil.
i) O Requerente deverá, preferencialmente, ser identificado através do seu número de identificação.
j) O novo assento de nascimento não poderá mencionar a alteração do registo.
k) O Conservador somente poderá solicitar o aperfeiçoamento do pedido de alteração de nome se deste resultarem erros, imperfeições, ou se o mesmo se revelar incompleto.
l) A recusa do pedido somente poderá ocorrer se não estiverem reunidos os pressupostos legais da legitimidade e capacidade.
m) O projecto de lei consagra também o direito ao recurso da decisão de indeferimento do Conservador.
n) As instituições a quem o Instituto de Registos e Notariado terá obrigação de informar acerca da alteração de nome e género serão definidas por portaria do Governo.
o) As instituições públicas e privadas que sejam notificadas da alteração referida na alínea anterior ficarão obrigadas, mediante pedido do Requerente, e sem custos adicionais, a emitir novos documentos com o novo nome e sexo.
p) As alterações ao registo do nome e do sexo, realizadas no estrangeiro, junto das autoridades do país em questão, por cidadãos portugueses também titulares da nacionalidade desse país, serão reconhecidas pelo Estado Português.
q) Quando as alterações ao registo civil resultem de sentença estrangeira, aplicar-se-ão as normas legais relativas à revisão de sentença estrangeira, nos termos do artigo 978.º e seguintes do Código de Processo Civil, e do artigo 7-º do Código do Registo Civil.
C – Medidas propostas no âmbito da Saúde
a) O projecto de lei visa salvaguardar o direito universal de acesso à saúde, sem discriminação em razão da identidade e/ou expressão de género.
b) Destaca-se a garantia de “acesso a intervenções cirúrgicas e/ou tratamentos farmacológicos destinados a fazer corresponder o corpo com a identidade de género com a qual a pessoa se identifica, garantindo sempre o consentimento informado.”
D – Medidas propostas contra o generismo e transfobia
a) O projecto de lei pretende um esforço da Administração Pública, em colaboração com associações de defesa da diversidade de género, para a promoção de medidas que visem a melhor integração de pessoas abrangidas pelo presente projecto de lei.
b) Visa medidas contra a discriminação.
c) Ambiciona a sensibilização de funcionários públicos e privados, bem como do público em geral, relativamente a esta matéria, combatendo a discriminação e a violência e promovendo o respeito por todas as pessoas.
E – Medidas propostas nas áreas da educação, ciência e ensino
a) Visa-se igualmente a promoção da igualdade e de práticas fomentadoras do respeito pela autodeterminação de género, bem como o combate de práticas discriminatórias, em função da identidade de género.
b) Visa-se ainda a criação de mecanismos de coordenação com o sistema de saúde, de educação e segurança social para detectar e intervir em situações de risco que ameacem o desenvolvimento saudável de crianças e jovens que manifestem uma identidade e/ou expressão de género diferente do que lhes foi atribuída à nascença.
c) Ambiciona-se a formação inicial e contínua de todos os profissionais do sistema educativo em matéria de identidade e/ou expressão de género e diversidade família.
F – Medidas propostas no âmbito laboral
a) Visa-se a protecção contra a discriminação em razão da identidade e/ou expressão de género.
b) Almejam-se programas e políticas de inserção profissional e promoção da empregabilidade de pessoas que manifestem uma identidade e/ou expressão de género diferente da que lhes foi atribuída à nascença.
II – Análise
A – Considerandos
a) Em matéria de direitos humanos, os princípios consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, bem como na Convenção sobre os Direitos das Crianças, devem constituir a matriz do sistema legislativo.
b) A presente análise assenta neste pressuposto, pretendendo-se isenta de juízos de valor que transcendam o tema dos direitos humanos.
c) O direito à liberdade, à igualdade e à não discriminação são direitos fundamentais e transversais, cuja concretização implica a legislação sobre diversas matérias, designadamente, atinentes à identidade civil, à saúde, à educação, ao trabalho e à protecção social. Ou seja, a promoção dos direitos humanos passa também pela criação de normas legais que possibilitem a vivência efectiva dos mesmos. Neste sentido, a iniciativa do presente projecto de lei é bastante louvável.
B – Análise genérica
a) No cômputo geral, o projecto visa salvaguardar a liberdade e a igualdade de direitos das pessoas que se revêem num género diferente daquele que lhes foi atribuído à nascença, pretendendo garantir-lhes o direito de autodeterminarem o seu próprio género, em função da sua vivência pessoal e interna.
b) Ora, do ponto de vista dos direitos humanos, parecem-nos legítimos os princípios subjacentes ao projecto de lei, liberdade, igualdade e não discriminação.
c) A definição de expressão de género suscita-nos algumas questões, uma vez que, por um lado, considera a expressão de género como uma manifestação pessoal da identidade de género, e em alternativa e/ou em simultâneo, considera que a expressão de género é a que pode ser percebida pelos outros.
d) Expressão é o acto através do qual alguém se expressa, manifesta, logo é um acto pessoal e independente de terceiro. Considerar que a expressão de género pode ser aquela que é percebida pelos outros pode desvirtuar o propósito da própria definição e abrir espaço para outras interpretações.
C – Registo Civil
a) Em matéria de Registo Civil, as alterações propostas são conformes com os valores expressos na Declaração Universal dos Direitos do Homem, na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e na Convenção sobre os Direitos das Crianças.
b) As matérias mais sensíveis respeitariam à redução da idade mínima para requerer a alteração do nome próprio, que passaria dos dezoito anos para os dezasseis, bem como a abertura desta possibilidade a menores de dezasseis anos.
c) No que respeita à alteração da idade mínima para dezasseis anos, o preâmbulo do projecto de lei apresenta uma explicação juridicamente muito satisfatória, alegando que é a idade a partir da qual são legalmente admissíveis o casamento e a emancipação.
d) Relativamente à abertura desta possibilidade a menores de dezasseis anos, importa referir que a Carta dos Direitos Fundamentais consagra no seu artigo 24.º o seguinte:
“1. As crianças têm direito à proteção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar. Podem exprimir livremente a sua opinião, que será tomada em consideração nos assuntos que lhes digam respeito, em função da sua idade e maturidade.
2.Todos os actos relativos às crianças, quer praticados por entidades públicas, quer por institucionais privadas, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança. (…)”
e) Em face do exposto, o projecto de lei vem concretizar o princípio da liberdade de opinião, e portanto de afirmação, já reconhecido às crianças. A avaliação da idade e maturidade da criança ficará a cargo dos seus representantes legais, ou eventualmente, dos tribunais, sendo sempre prevalecente o interesse superior da criança.
f) Também o artigo 13.º da Convenção sobre os Direitos da Criança consagra o direito à liberdade de expressão, e o artigo e 14.º sagra o direito à liberdade de pensamento e consciência das crianças, o que parece estar em sintonia com o que o projecto-lei pretende concretizar.
g) O projecto de lei visa, igualmente, alargar o direito de alteração do nome próprio a cidadãos estrangeiros titulares de autorização de residência em Portugal.
h) Novamente, à luz dos princípios supramencionados, seria uma medida promotora de igualdade.
i) Poderão, eventualmente, levantar-se algumas questões concernentes ao Direito Internacional, porém, relativamente às mesmas, abstemo-nos de considerações, uma vez que o nosso propósito é a reflexão sobre os direitos humanos.
D – Promoção da Igualdade, Saúde, Educação e Trabalho
No nosso entendimento, as medidas de promoção da igualdade e de protecção contra a discriminação, nomeadamente no âmbito da saúde, educação e trabalho apresentam-se de acordo com os princípios consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e na Convenção sobre os Direitos das Crianças.