Antes de mãe, é mulher, e antes de mulher é pessoa

Por Luísa Freitas,
ativista da ReAJ – Rede de Ação Jovem

Uma das principais divisões que marcam a nossa sociedade é a capacidade de gerar uma vida. Esta divisão injusta e incorreta (não só ignora vastas franjas do espectro de género como inúmeras características sexuais que fazem com que pessoas que aparentemente estariam num lado estejam do outro) está na génese de um rol de problemas que caracterizam a nossa sociedade.
Desde que os movimentos feministas conseguiram a igualdade de direitos civis (nos chamados países desenvolvidos) que a sua ocupação se tem centrado na interseccionalidade da opressão da sociedade e, mais pormenorizadamente, na obtenção da igualdade laboral.
Apesar de na lei (novamente nos referimos a países ditos desenvolvidos) estar plasmada a igualdade salarial (salário igual por trabalho igual), a verdade é que os movimentos feministas continuam a declarar que esta realidade está longe de ser conseguida.
Porquê? E porque estamos consequentemente a especificar que nos referimos a países ditos desenvolvidos? E que tem isto a ver com o dia da Mãe?

No dia da Mãe celebramos as nossas Mães. É o dia em que se registam mais chamadas telefónicas, resultando num aumento de quase 37% do tráfico de chamadas relativamente a qualquer outro dia do ano. [7] Com o evoluir da sociedade as mães podem agora trabalhar, ocupar cargos de chefias, de gestão, etc. E a ligação está aqui. A igualdade (ou a falta dela) está precisamente aqui. As mulheres podem chegar aos mesmos cargos que os homens, mas a que custo? Em Portugal por exemplo, as mulheres têm, em média, maiores níveis de formação que os homens, no entanto, os cargos mais elevados continuam a ser ocupados por homens. Porquê? É recorrente ouvirmos desculpas como: mas a mulher é mãe. Então e o homem não é pai? Temos uma sociedade que obriga a mãe a escolher entre a família e a vida profissional. Vivemos numa sociedade que ainda assume que os cuidados de terceiros, da lida da casa, as funções mais mundanas, ainda recaem sobre as mulheres. Segundo o estudo realizado em Portugal pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) [8], em média, as mulheres dedicam mais de metade do seu tempo acordadas em casa a cuidar da casa e do/a(s) filho/a(s) (56% do tempo acordadas). É dramático ver que, apesar de terem um trabalho pago tal como os homens, as mulheres ainda são as principais cuidadoras das crianças, pessoas idosas, pessoas com deficiências, ainda são as principais cuidadoras da casa.

Podemos dizer que, na lei, já há a obrigatoriedade de salário igual por trabalho igual. No entanto, muitas vezes as mulheres não podem concorrer a determinados postos pela obrigatoriedade que sentem em cumprir com a obrigatoriedade social de cuidar, algo que não recai sobre os homens. Além do mais, no próprio acesso ao emprego, na escolha de candidatos/as, são vários os relatos de casos em que se escolheram homens em vez de mulheres porque “o homem não vai faltar por uma emergência de saúde familiar” ou porque “o homem não vai engravidar”. Todos estes aspetos: acesso ao trabalho, acesso a cargos superiores, realização de tarefas não remuneradas, etc. são fatores que determinam o chamado gender gap. E quem sai prejudicadas são as nossas mães, e, se nada mudar, seremos nós, mulheres.

E porque falamos dos ditos países desenvolvidos (*)? Porque a realidade nos países mais pobres é ainda pior. O relatório do World Economic Forum de 2018 sobre o gender gap [9] mostrou que, em linhas gerais, quanto mais desenvolvido é o país menor é o gender gap e isto deve-se ao facto de que, em países mais empobrecidos, entram na equação outros dados: diferenças no nível de educação (sendo que as mulheres apresentam níveis de educação muito menores), violência de género com níveis muito maiores e com repercussões mais acentuadas, mortalidade no parto, entre outros fatores (**). Ou seja, as mães não só são prejudicadas nos países “desenvolvidos” por serem isso mesmo, como o são em países mais pobres pelo simples facto de serem mulheres. São inúmeros os casos do uso de violência sexual em períodos de guerra, bem como as mulheres são as primeiras a ser afetadas em períodos de crise: são quem mais depende da agricultura que pode ser afetada por períodos de seca, inundações, pragas ou destruição; são em quem recai a obrigação de ir buscar água, muitas vezes a pé e a quilómetros de distância, o que também é afetado por alterações climáticas ou guerras; são quem menos tem acesso a educação, formação e emprego, sendo portanto quem fica mais vulnerável a abusos por parte de homens apenas em nome da sua própria sobrevivência; são quem mais corre risco de violação, são quem menos tem acesso a informação e menos poder de decisão tem sobre a sua saúde sexual e reprodutiva.

 

 

Nepali Women Carrying Heavy Loads, fonte: banco de dados da Amnistia Internacional, crédito de copyright: © Amnesty International, Nepal

Esta realidade tem que mudar. As mulheres são claramente quem mais sofre opressão. E essa opressão aumenta à medida que analisamos os vários níveis de opressão que existem. Mulheres com posses em países desenvolvidos sofrem opressão por causa do seu género. Mulheres sem posses em países desenvolvidos sofrem opressão pelo seu género e pelo seu baixo nível económico. Mulheres negras pela cor da pele, pois sofrem também racismo. Mulheres imigrantes sofrem xenofobia. Mulheres trans sofrem transfobia. Mulheres não heterossexuais sofrem de lesbo ou bifobia, por exemplo. A lista não tem fim. Há vários níveis de opressão que a mulheres sofrem, mas todos começam no facto de serem mulheres.
A obrigatoriedade de serem mães não melhora a situação. Não podem optar por não engravidar porque a sociedade ainda vê com maus olhos a mulher que escolhe não o ser.
Não podem escolher ou definir a sua carreira porque a sociedade não permite que uma mulher seja ativa na sociedade e mãe em simultâneo.
Não podem optar pela sua saúde, pelos seus desejos, pela sua saúde mental, pelo seu bem-estar, porque a vida do feto que carrega é mais importante.
Não acreditam na sua palavra.

 

Teodora Vasquez, fonte: banco de dados da Amnistia Internacional, crédito de copyright: Amnesty International, 2015, El Salvador

Não conseguem denunciar abusos porque de uma maneira ou de outra a sociedade está ainda muito imersa em preconceitos, e vão acabar por ser acusadas de usar uma saia muito curta, um decote muito grande ou por ter bebido um copo a mais.
Não podem denunciar assédio sob risco de repercussões.
Refugiam-se na internet mas sofrem abusos constantes no mundo tecnológico, iguais ou piores que no mundo real. [4][11]

 

Fonte: banco de dados da Amnistia Internacional, crédito de copyright: © Sergio Ortiz/Amnesty International, México

E quando não têm para onde se virar, quando a sociedade as obriga a procurar soluções desesperadas, quando têm que sobreviver e arranjar soluções desesperadas, nem a lei nem ninguém as protege.
As mulheres são as que mais facilmente são apanhadas em redes de tráfico ou prostituição, nas quais por vezes entram por se encontrarem desesperadas: para fugir de violência, para conseguir dinheiro para sobreviver, para conseguir proteção, etc.
E são também as mulheres que voluntariamente se tornam trabalhadoras do sexo. Devido a todos os motivos que elencámos, e outros nos quais estes se subdividem [2][5], as mulheres muitas vezes encontram-se em situações que as levam a não encontrar alternativa na sua vida que lhes garanta a sua sobrevivência e de quem delas é dependente. [12].

 

 Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=_D6J2psOv7Y

Esta realidade em que as mulheres não só são abusadas em vários níveis, desacreditadas, violentadas, sujeitas a vários níveis de opressão, forçadas a decisões terríveis e a vidas terríveis, e tudo isto enquanto têm que respeitar os mais alto padrões de beleza, não pode resultar bem. O estudo que já referimos da FFMS [8] mostrou que 33% das mulheres em Portugal se sentem infelizes.
Quando analisamos ao pormenor a vida das mulheres por todo o mundo os fatores que se repetem não são poucos: medo, abuso, violência, instabilidade financeira, inúmeras obrigações tanto da lida doméstica como familiar, destruição ou abandono de sonhos. Todos estes aspetos afetam tanto a saúde física como mental.

Como podemos deixar que isto tudo continue?
Queremos que os direitos de todas as pessoas sejam respeitados. Queremos mulheres felizes e realizadas. Queremos mães felizes e realizadas. Temos que fazer prevalecer o amor, a compaixão, a empatia.

Ser mãe deve ser uma escolha consciente e informada. Não deve ser um impedimento de carreira. Não deve ser imposição social. Não deve ser um desejo do parceiro. Não deve causar problemas.
E todas as mães devem ter os mesmos direitos.

A nossa ação é necessária. Não só pelas mães. Pelas mulheres de todo o mundo, sejam elas quem sejam, sejam elas como forem e de onde forem. Porque antes de serem mães já eram mulheres, e antes dos preconceitos terem sido criados, já elas eram pessoas, com direitos, que têm que ser garantidos.

 

 

MBMR Maghreb petition, fonte: banco de dados da Amnistia Internacional, crédito de copyright: Amnesty International, Reino Unido

 

 

A ação não pode faltar. Saibam como podem contribuir aqui:
https://www.amnesty.org/en/get-involved/take-action/relatives-of-the-disappeared-must-be-respected-not-attacked/
https://www.amnesty.org/en/get-involved/take-action/call-on-lebanon-to-protect-migrant-domestic-workers/
https://www.amnesty.org/en/get-involved/take-action/argentina-decriminalise-abortion/
https://www.amnesty.org/en/get-involved/take-action/demand-sex-workers-protection-in-the-dominican-republic/
https://www.amnesty.org/en/get-involved/take-action/syria-women-political-participation/
https://www.amnesty.org/en/get-involved/take-action/denmark-sex-without-consent-is-rape/

 

Fontes
(*) http://blogs.worldbank.org/opendata/2016-edition-world-development-indicators-out-three-features-you-won-t-want-miss – A terminologia que diferencia países desenvolvidos, em desenvolvimento, etc. é uma terminologia desatualizada mas que, no entanto, ainda serve para explicar e transmitir a ideia que pretendemos.
(**) A título de curiosidade, dos 149 países avaliados, no topo da lista com o menor índice de gender gap encontra-se a Islândia, seguido da Noruega (2º) e da Suécia (3º). Portugal encontra-se em 37º lugar, rodeado da Argentina (36º) e da Sérvia (38º), e os EUA em 51º lugar. Os últimos três lugares foram atribuídos ao Iraque (147º), Paquistão (148º) e Iémen (149º).

[1] Statement to Discussion on cooperation in the field of sexual and gender based crime, Amnesty International, dezembro de 2014
[2] Explanatory note on Amnesty International’s policy on state obligations to respect, protect and fulfil the human rights of sex workers, Amnesty International, maio de 2016
[3] The UN Committee on the Elimination of Discrimination Against Women – Amnesty International’s Observations on the Draft General Recommendation No. 35 on Gender-Related Dimensions of Disaster Risk Reduction in a Changing Climate, Amnesty International, janeiro de 2017
[4] Recommendations to the G20 in 2018 on the impact of technology on women in the workforce, Amnesty International, 2018
[5] Amnesty International policy on state obligations to respect, protect and fulfil the human rights of sex workers, Amnesty International, maio de 2016
[6] The UN Human Rights Council Must Urge States to Reform Criminal Laws Punishing Women’s and Girls’ Sexual and Reproductive Choices – Written statement to the 32nd regular session of the UN Human Rights Council (13 June-1 July 2016), Amnesty International, maio de 2016
[7] https://www.history.com/topics/holidays/mothers-day (28.abril)
[8] https://www.ffms.pt/mulher-em-portugal (28.abril)
[9] The Global Gender Gap Report 2018, World Economic Forum, 2018
[10] 2018 Report on equality between women and men in the EU, European Comission, 2018
[11] https://www.amnesty.org/en/latest/campaigns/2018/03/violence-against-women-online/ (28.abril)
[12] Igualdade de género: a mulher na legislação, in Ciclo de Debates: Eleições Europeias, organizado por ReAJ e Grupo Universitário da Universidade Nova de Lisboa, 27 de maio de 2018

Se quiseres saber um pouco mais sobre alguns temas de que falámos neste texto, estão aqui algumas leituras complementares:
https://www.amnesty.org/en/documents/sec01/007/2008/en/
https://www.amnesty.org/en/documents/act30/8070/2018/en/
https://www.amnesty.org/en/latest/campaigns/2019/03/five-wins-for-womens-rights/
https://www.amnesty.org/en/latest/news/2018/02/el-salvador-release-of-woman-jailed-for-stillbirth-must-signal-end-of-total-abortion-ban/
https://www.amnesty.org/en/documents/amr19/006/2014/en/
http://www.umarfeminismos.org/index.php/component/content/article/33/479-resolucao-sobre-a-prostituicao-uma-atitude-pro-direitos-e-de-combate-a-estigmatizacao