Por que é que os Direitos são Humanos?

“Amnistia Internacional portuguesa contra condenação à morte de Saddam”.

“Amnistia Internacional exige encerramento de Guantánamo”.

“Amnistia condena “espetáculo indigno” de fotos da detenção de suspeitos”.

Ao longo dos 58 anos de actividade da Amnistia Internacional, foram muitos os títulos na imprensa como os que se veem acima. Por várias vezes tivemos de defender aquilo que, para muitos, era indefensável: julgamentos justos para ditadores, responsáveis por dezenas de milhar de mortes; respeito pelos direitos de detidos e prisioneiros, acusados dos piores crimes; oposição inflexível à aplicação da pena de morte e ao uso de tortura e outros tratamentos degradantes.

Em muitos casos, a Amnistia, numa atitude aparentemente suicida, atirou-se para o olho do furacão do universo mediático e colocou-se contra a tendência dominante na opinião pública, assumindo a defesa de pessoas para quem, dir-se-ia, os únicos direitos que interessam são os próprios.

A questão que imediatamente se coloca é: porquê? Por que é que a Amnistia Internacional, que supostamente luta por um mundo mais justo, se põe a defender aqueles que são os seus maiores adversários?! Por que é que num momento está a fazer campanha contra o governo de determinado tirano e, a seguir, está a defender os direitos desse tirano?! Por que é que defende os direitos de quem ataca os direitos dos outros?!

A resposta é simples, mas nem sempre compreendida: porque o Passado a isso nos obriga.

 

Pouco depois do fim da 2ª Guerra Mundial, surgiu um célebre texto da autoria do pastor luterano alemão Martin Niemölle, posteriormente adaptado por Bertolt Brecht e outros:

“Quando os nazis levaram os comunistas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era comunista.

Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era social-democrata.

Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei, porque, afinal, eu não era sindicalista.

Quando levaram os judeus, eu não protestei, porque, afinal, eu não era judeu.

Quando eles me levaram, não havia mais quem protestasse”

 

Subjacente ao texto, encontramos a ideia fundamental de que a qualidade dos nossos direitos depende da qualidade dos direitos dos outros: quanto mais fortes forem os dos outros, mais fortes são os nossos; quanto mais fracos forem os dos outros, mais vulneráveis estamos. Em sociedades democráticas, a saúde da própria Democracia (e dos princípios que a sustentam) não depende dos que a governam, mas dos que a formam, ou seja, de todos os cidadãos e da sua capacidade para estarem atentos e activos na defesa dos direitos de todos, que são os seus também. Porque, se vacilarem, se abdicarem de parte dos seus direitos ou admitirem que determinado grupo da sociedade não os tenha, estão a abrir o precedente para, mais tarde, a injustiça lhes bater à porta.

Outra frase célebre para nos ajudar a explicar tudo isto, e que é habitualmente usada para resumir parte do pensamento de Voltaire: “abomino aquilo que dizeis, mas lutarei até à morte pelo vosso direito a dizê-lo”.

Estas palavras, que já todos ouvimos ou lemos, não dizem outra coisa que não seja “os direitos de alguém não dependem da sua condição, mas da sua natureza”. Transpondo-a para os dias de hoje, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos como referência, podemos dizer que o que frase nos diz é que, qualquer pessoa, independentemente da sua proveniência, trajecto, pensamento ou acção, tem um conjunto de direitos inalienáveis – como a presunção de inocência e a um julgamento justo – que, não só não devem ser violados, como devem ser protegidos caso alguém os ponha em causa.

Porquê? Por que é que quem infringe as normas (sociais ou legais) há-de beneficiar dos mesmos direitos que quem as cumpre? Em primeiro lugar, e tal como vimos acima, porque abdicar dos direitos de uns é, potencialmente, abdicar dos próprios. Se, ao contrário, vivermos em sociedades capazes de garantir que até os “piores” têm direitos, não haverá nunca o risco de os perdermos. Por outro lado, porque a alternativa a esta fórmula será a intolerância e a aceitação duma “Justiça” puramente punitiva, uma lógica que, ao longo de milénios e, infelizmente, ainda hoje, provou que não ajuda a combater a criminalidade, não reabilita prisioneiros e contribui para que se cometam injustiças contra pessoas inocentes. Uma lógica, portanto, com custos devastadores para a sociedade em geral.

Será útil, terá pensado Voltaire (e nós concordamos), experimentar outra abordagem.

Quando defendemos os direitos destas pessoas, que aos olhos da opinião pública já estão condenadas, é isso mesmo que fazemos: defendemos os direitos. Não a conduta.

Ao assumir posições potencialmente controversas, a Amnistia não procura gerar polémicas e muito menos pôr-se do lado de quem destrói, mata, discrimina. Quando o faz, é para alertar todos para o facto de que talvez seja um mau presságio uma democracia nascer com uma execução sumária; de que pôr em causa os direitos de alguém que é detido se pode virar contra nós; de que aceitar o uso de tortura contra alguém é aceitar que, um dia, mudando-se as vontades, seja o nosso corpo o alvo. No fundo, é para cumprir o desígnio para o qual nasceu: construir um mundo de cidadãos, críticos, atentos, capazes de se defender e que contribuam para o nosso primeiro e último objectivo: que todo o ser humano desfrute dos seus direitos; que os direitos sejam realmente, e em todos os sentidos, Humanos.

Por José Tavares
Membro do Grupo Local 32/Leiria da Amnistia Internacional Portugal